quinta-feira, 3 de março de 2011

Texto do livro: Eu quero aquele sapato

Calçados Luiza Prado em lojas apartir de Abril/2011




Em italiano, minha língua materna, para dizer que uma pessoa não vale nada, se usa a expressão "metade de uma meia". Metade de uma meia, nunca metade de um sapato. E há uma razão para isso: o sapato é uma sinédoque, a parte pelo todo (ou seja, a mulher que está em cima dele). No meu país, que tem forma de bota e é terra dos melhores sapateiros do mundo, não se rebaixa um sapato, nem por insulto.

Em italiano, também falamos: "Meu moral está abaixo do sapato", para dizer que estamos tão pra baixo, que nem o sapato tem forças para arrastar nossa alma.

Dizemos "tirar o sapato de alguém", que significa passar a perna, levar vantagem sobre o outro, tirando os dois objetos indispensáveis para que se "siga em frente".

Dizemos: "Não é digno nem de amarrar o sapato dele", uma humilde honra para aqueles que mereceriam mais.

Dizem que alguns políticos napolitanos, nos anos 50, presenteavam seus potenciais eleitores com um único sapato, dando o outro pé só depois da eleição. Porque o sapato é o simulacro perfeito do casal, como evidencia tristemente a expressão de muitas mulheres abandonadas: "Me deixou como um sapato velho", já que o sapato velho é o símbolo do objeto inutilizável. Ainda mais quando resta só um pé. Nesse estágio, sapato ou mulher não fazem a menor diferença.

Em italiano, também se diz "falar com os pés", "escrever com os pés", "agir com os pés". Ou seja, muito mal, sem atenção, sem boa vontade ou conhecimento de causa. Essa conotação negativa nasce da contraposição entre as mãos (nobres) e os pés (ignóbeis). É um arcaísmo que acredita serem as mãos mais próximas da mente e do coração, ao passo que os pés ficam lá embaixo, meios de transporte acéfalos.

Em inglês, em compensação, é evidente que os calçados (e, portanto, os pés que abrigam) são o fundamento da personalidade de quem os usa. De fato, fala-se em "se colocar nos sapatos" de alguém. E considero essa expressão muito feliz. Imagine só: calçar o sapato de alguém é realmente um gesto íntimo, muito mais íntimo do que pegar uma roupa
emprestada.

Para as mulheres, em especial, é algo tão íntimo, que é um dos primeiros gestos que fazemos quando crianças, assim que conseguimos nos manter em posição ereta. Mal queremos nos sentir "grandes", e já colocamos o sapato da mamãe, de preferência de salto. Assim, subimos em um pedestal que imediatamente enaltece nossa feminilidade. Aquele sapato "roubado", ainda que por poucos instantes, nos faz crescer, em todos os sentidos.

Os psicanalistas explicam que se trata de um ritual de "projeção", mas eu me lembro dele como um momento mágico. Todas as fantasias que usávamos para brincar de casinha começavam ali.

Para os adultos, ver uma menina de sapato de salto alto é algo doce e cômico, mas, para a menina, representa a entrada em um mundo de aspirações e sonhos. Sentir aquela extremidade liliputiana e gorducha navegando pelos objetos com que a mamãe leva a si mesma para passear cria na menina a ilusão de que, em breve, ela também poderá fazer aquelas coisas "de adulto" que, nessa idade, são proibidas.

Sigmund Freud diria que a apropriação infantil do sapato materno é quase uma tentativa de seduzir o pai, o desafio, por parte da criança, de assumir o papel da mãe.

E depois? Depois crescemos de verdade, atingimos a mesma altura da mãe, começamos a distinguir a nossa personalidade, comprando sozinhas o primeiro sapato. Quando crescemos, queremos que os sapatos nos representem. O interessante é que eles irão nos definir para sempre. Eles denotam idade, estado de espírito, desejos para os vários momentos da vida e, até mesmo, do dia. O sapato conta tudo sobre uma mulher.

A atriz Penélope Cruz confessa: "Nunca consegui estudar um novo personagem sem antes escolher, junto com o diretor, o sapato que usa a mulher que iremos levar à tela. Tudo começa lá embaixo."

Então, a pergunta é: do que falam as mulheres quando falam com os pés?